EMENTA
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. PENAL. ART. 217-A DO CÓDIGO PENAL.
CONTINUIDADE DELITIVA. NÚMERO INDETERMINADO DE ATOS SEXUAIS. FRAÇÃO DE
MAJORAÇÃO DA PENA. CRIMES PRATICADOS POR LONGO PERÍODO DE TEMPO.
RECORRÊNCIA DAS CONDUTAS DELITIVAS. PRÁTICA INEQUÍVOCA DE MAIS DE 7
(SETE) REPETIÇÕES. POSSIBILIDADE DE MAJORAÇÃO MÁXIMA. [...]
1. A continuidade delitiva, prevista no art. 71 do Código Penal, é
instituto da dosimetria da pena concebido com a função de racionalizar a
punição de condutas que, embora praticadas de forma independente,
estejam inseridas dentro de um mesmo desenvolvimento delitivo. Por opção
legislativa e critérios de política criminal, a lei penal afasta
excepcionalmente a aplicação do concurso material e impõe uma única
punição àqueles casos nos quais os crimes subsequentes possam ser tidos
como continuação de um primeiro delito, de acordo com a análise das
condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes.
2. A compreensão jurisprudencial uníssona desta Corte Superior firmou-se
no sentido de que, diante da prática de apenas 2 (duas) condutas em
continuidade, deve-se aplicar o aumento mínimo previsto no art. 71,
caput, do Código Penal, qual seja, 1/6 (um sexto). A partir desse piso,
a fração de aumento deve ser aumentada gradativamente, conforme o número
de condutas em continuidade, até se alcançar o teto legal de 2/3 (dois
terços), o que ocorre a partir da sétima conduta delituosa.
3. A adoção do critério referente ao número de condutas praticadas
suscita questões específicas nos crimes de natureza sexual,
especialmente no delito de estupro de vulnerável, em razão do triste
contexto fático que frequentemente se constata nestes crimes. Segundo
dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2023 acerca da
violência sexual infantil, ao longo de 2022 houve, no Brasil, 56.820
registros policiais de estupro de vulnerável. Desse total, 72,2% dos
casos ocorreram na própria residência da vítima e em 71,5% dos casos o
estupro foi cometido por um familiar.
4. A proximidade que o autor do delito de estupro de vulnerável
normalmente possui com a vítima, a facilidade de acesso à sua residência
e a menor capacidade que os vulneráveis possuem de se insurgir contra o
agressor são condições que favorecem a repetição silenciosa, cruel e
indeterminada de abusos sexuais. Não raras vezes, cria-se um ambiente de
submissão perene da vítima ao agressor, naturalizando-se a repetição da
violência sexual como parte da rotina cotidiana de crianças e
adolescentes. Nessas hipóteses, a vítima, completamente subjugada e
objetificada, não possui sequer condições de quantificar quantas vezes
foi violentada. A violência contra ela deixou ser um fato
extraordinário, convertendo-se no modo cotidiano de vida que lhe foi
imposto.
5. A torpeza do agressor, que submeteu a vítima a abusos sexuais tão
recorrentes e constantes ao ponto de tornar impossível determinar o
número exato de suas condutas, evidentemente não pode ser invocada para
se pleitear uma majoração menor na aplicação da continuidade delitiva.
Nos crimes de natureza sexual, o critério jurisprudencial objetivo para
a fixação da fração de majoração na continuidade delitiva deve ser
contextualizado com as circunstâncias concretas do delito, em especial o
tempo de duração da situação de violência sexual e a recorrência das
condutas no cotidiano da vítima, devendo-se aplicar o aumento no patamar
que, de acordo com as provas dos autos, melhor se aproxime do número
real de atos sexuais efetivamente praticados.
[...]
[...] Para os fins do art. 927, inciso III, c.c. o art. 1.039 e
seguintes, do Código de Processo Civil, fixa-se a seguinte tese: "No
crime de estupro de vulnerável, é possível a aplicação da fração máxima
de majoração prevista no art. 71, caput, do Código Penal, ainda que não
haja a delimitação precisa do número de atos sexuais praticados, desde
que o longo período de tempo e a recorrência das condutas permita
concluir que houve 7 (sete) ou mais repetições".
[...]
(REsp 2029482 RJ, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção,
julgado em 17/10/2023, DJe de 20/10/2023)
(REsp 2050195 RJ, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção,
julgado em 17/10/2023, DJe de 20/10/2023)